23 maio 2014

O PÉ DA BAILARINA




às vezes o mundo explode e insinua‐lhe o seu enigma. revela pistas e mostra as peças que o compõem, ou parte delas. nem o mundo foi o crime perfeito. tenta encaixar as peças, mas elas faltam‐lhe sempre. as que não faltam descansam sobre as placas flutuantes que suportam tudo o que é do mundo e dos homens. ondulando, cada peça é uma forma instável – ora redonda, ora obtusa – que vai regurgitando significados diferentes. e os seus olhos são servos enfeitiçados que lhes adivinham a secreta participação na ilusão que vela o sentido do mundo: umas vezes, esforçam‐se por captar o que fica da transfiguração das coisas e da sua aparição intermitente, outras, cerram‐se como punhos agastados para sossegar um estômago às voltas. o sentido é um sol quebrado.
por vezes, quando os seus olhos abertos se perdem, há aqueles instantes plenos em que tudo se alinha perfeitamente, os momentos geométricos em que tudo se equilibra no fio de trapézio de uma palavra ou de um dia de chuva. e ela equilibra‐se também sobre um chão que plana despido de gravidade. então é um corpo que roda sobre si mesmo com o mundo suspenso na ponta dos pés.

Helena Carvalho. in, a sul de nenhum norte n.º 6, p. 55

[no blog de Manuel Margarido]

11 maio 2014

CANTO DE MIM MESMO





as casas e os quartos estão repletos de perfumes,
as prateleiras estão repletas de perfumes,
eu próprio aspiro essa fragrância, conheço-a e gosto dela,
eu próprio dela poderia embriagar-me, mas não o
permitirei.

a atmosfera não é um perfume, não sabe a emanação
alguma, é inodora,
para sempre ficará na minha boca, por ela me apaixonei,
irei ao rio junto ao bosque e despojar-me-ei de disfarces
e roupas,
estou louco por entrar em contacto com ela.
o fumo da minha própria respiração,
ecos, ondulações, murmúrios e sussurros, raiz do amor,
fio de seda, forquilha e vide,
a minha respiração e inspiração, o bater do coração,
o sangue e o ar que passam pelos meus pulmões, 

o odor das folhas verdes e das folhas secas, da praia e das
rochas escuras do mar, e do feno no celeiro,
o som das palavras que a minha voz atira aos remoinhos
do vento,
alguns beijos leves, alguns abraços, os braços à volta
de um corpo,
o jogo de luz e sombra nas árvores com os dóceis ramos
balouçando,
o prazer de estar só ou no tumulto das ruas, ou pelos
campos e colinas,
a sensação de saúde, os gorjeios do grande meio-dia,
o meu canto ao levantar-me da cama e encontrar o sol. 

achas que mil acres são muitos? Achas que a Terra é muita?
praticaste o necessário para aprender a ler?
sentiste-te orgulhoso por captar o sentido dos poemas? 

fica comigo este dia e esta noite e possuirás a origem
de todos os poemas,
possuirás o que há de bom na Terra e no Sol
(há milhões de sóis)
não terás coisas em segunda ou terceira mão, nem verás
pelos olhos dos mortos, nem te alimentarás
dos espectros dos livros,
nem através dos meus olhos verás, nem de mim terás
as coisas,
escutarás tudo e todos e tudo em ti filtrarás.


de: Walt Whitman
(tradução de José Agostinho Baptista)






05 maio 2014

A MANHÃ





a manhã estática parada 
entre o Tejo azul e a torre branca
que branca e barroca sobe das águas

manhã acesa de silêncio e de louvor
na breve primavera violenta

assim a minha vida era calma
de repente se tornou ânsia e saudade
mas a brisa da varanda é doce e suave
um pássaro canta porque alguém regou

de: Sophia de Mello Breyner