26 novembro 2014

INDICIOS





Fui dispersando indícios na esperança 
de que tu os juntasses e um dia
chegasses até mim como te queria
e cedo te sonhei desde criança.

Guardo ainda bem nítida a lembrança
do tempo em que sozinho percorria
as ruas da cidade estranha e fria,
certo de que quem busca sempre alcança.

Mas tu passaste e não deste por nada
e os indícios sumiram-se no fumo
do trânsito, entre as pedras da calçada,

e eu, que me dou aos desafios que assumo
e sei que a noite cede à madrugada,
levantei-me e segui um novo rumo.


de: Torquato da Luz
[26 de Novembro de 1943 - 25 de Março de 2013]






17 novembro 2014

OS SENTIMENTOS HUMANOS...





Os Sentimentos Humanos certo dia se reuniram para brincar. 

Depois que o Tédio bocejou três vezes porque a Indecisão não chegava a conclusão nenhuma e a Desconfiança estava tomando conta, a Loucura propôs que brincassem de esconde-esconde. 

A Curiosidade quis saber todos os detalhes do jogo, e a Intriga começou a cochichar com os outros que certamente alguém ali iria trapacear. 

O Entusiasmo saltou de contentamento e convenceu a Dúvida e Apatia, ainda sentadas num canto, a entrarem no jogo. 

A Verdade achou que isso de esconder não estava com nada, a Arrogância fez cara de desdém pois a ideia não tinha sido dela, e o Medo preferiu não se arriscar: “Ah, gente, vamos deixar tudo como esta”, e como sempre perder a oportunidade de ser feliz. 

A primeira a se esconder foi a Preguiça, deixando-se cair no chão atrás de uma pedra, ali mesmo onde estava. 

O Optimismo escondeu-se no arco-íris, e a Inveja se ocultou junto a Hipocrisia, que sorrindo fingidamente atrás de uma árvore estava odiando tudo aquilo.

A Generosidade quase não conseguia se esconder porque era grande, e ainda queria abrigar meio mundo, a Culpa ficou paralisada pois já estava mais do que escondida em si mesma, a Sensualidade se estendeu ao sol num lugar bonito e secreto para saborear o que a vida lhe oferecia, porque não era nem boba nem frígida; o Egoísmo achou um lugar perfeito onde não cabia ninguém mais. 

A Mentira disse para Inocência que ia se esconder no fundo do oceano, onde a inocente acabou afogada, a Paixão meteu-se na cratera de um vulcão activo, e o Esquecimento já nem sabia o que estava fazendo ali. 

Depois de contar 99 a Loucura começou a procurar.

Achou um, achou outro, mas ao remexer num arbusto espesso ouviu um gemido: era o Amor, com os olhos furados pelos espinhos.

A loucura o tomou pelo braço e seguiu com ele, espalhando beleza pelo mundo. Desde então o Amor é cego e a Loucura o acompanha.

Juntos fazem a vida valer a pena.

de: Lya Luft







08 novembro 2014

AS NEREIDES






Pudesse eu reter o teu fluir, ó quarto 
Reter para sempre o teu quadrado branco 
Denso de silêncio puro 
E vida atenta 
Reter o brilho 
Da Cassiopeia em frente da janela 
Reter a queda 
Das ondas sobre a areia 
E habitar para sempre o teu espelho 
Que de meus ombros jamais tombasse o tempo 
Marinho misterioso e antigo 
Assim como as Nereides 
Não perderão jamais seu manto de água

de: Sophia de Mello Breyner





04 novembro 2014

É OUTRA VEZ A MÚSICA





é outra vez a música,
é outra vez a música que me chama,
outra vez esse esplendor quase animal
que me procura e comigo se faz alma
ou primeira manhã sobre as areias.

de: Eugénio de Andrade