28 abril 2015

ELE GUIAVA COM MÃOS CEGAS...




ele guiava com mãos cegas
a personagem que lhe tinham confiado
e sua voz ia apresentando
mais que o resto distante do seu corpo,
seguindo a pauta,
       - luz que era sua única via,
tão essencial como escassa, escura.

mas o que ele cantava era o extravio,
ser aí um estranho,
estar num palco a enfrentar
quem imóvel o perseguia nas trevas
desde quando inseguro principiara,
já não lhe importava quando nem porquê.

a máscara do seu canto iluminava
o rosto em que fora assumindo
uma loucura oculta:
rostos de muitos, ignorados,
um após outro, usurparam o seu,
que ele reconhecia no silêncio, sozinho.

pródigo, dissipara-se neles,
desfigurado pela ilusão
de holofotes, cartazes, claques dúbias,
        - poeira de um campo cujo termo
era longe, não sabia em que longe,
onde acaso ele se encontrasse
num outro, em muitos, em ninguém.

                                      e na sua frente a orquestra sufocante
                                      de ondas secas, sem praia, a persegui-lo.


de: José Bento
em: RESUMO [a poesia em 2011]




24 abril 2015

NOITE DE ABRIL





NOITE DE ABRIL

Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua. 

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste 
A noite de hoje veste 
Uma rua nova destruiu a rua do costume.

As coisas conhecidas de aventura. 
 Como se sempre nela houvesse este perfume 
E às vezes, o silêncio estremece
De vento leste e Primavera, 

A sombra dos muros espera 
 Alguém que ela conhece. 
Como se fosse a hora de passar alguém 
Que só hoje não vem. 

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I






09 abril 2015

SEM SEGREDO ALGUM



rodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,
vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.

a obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.

o que és não és, não há segredo algum.
selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
estou no interior da árvore, entre negros insectos.
sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.

de: António Ramos Rosa 
em: Volante Verde [1986]





03 abril 2015

NINGUÉM MEU AMOR





Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar 
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.


de: Sebastião Alba

[www.culturapara.art.br/opoema/sebastiaoalba/]