02 junho 2015

IMAGEM DO MUNDO



de: Rafal Olbinski

Vejo o Mundo. E ao ver as coisas do mundo 
com a sua realidade própria, vejo também
a diversidade que existe em cada coisa,
distinguindo-a, múltipla ou plural,
como se diz. No entanto, o que eu vejo
é sempre igual ao que eu penso
que o mundo é; e tudo se torna
semelhante, dentro deste mundo que é
o meu, e é sempre diferente do mundo que
existe no pensamento de outro. É por isso
que não penso nas coisas do mundo como
se fossem minhas; e que o deixo para os outros,
para que eles façam o mundo como quiserem,
para que seja diferente do meu, quando o
olho, e o que vejo me restitui o mundo
como eu o quero, diferente do mundo que
os outros pensam.

de: Nuno Júdice
em: Geometria Variável



23 maio 2015

SOBRE O CONCERTO EM D MAIOR [R. 93] DE ANTÓNIO VIVALDI





"Os meus dias passaram", escreveu Job no livro
que a terra encheu de seca melancolia, para que os barrocos glosassem
o seu conteúdo. No entanto, é em Horácio, e nessa breve felicidade
que envolve as coisas do campo, quando as nuvens dão lugar
dão lugar a Febo, que encontro o compasso do coração que bate nestes
versos, com o seu ritmo suave, que ouço quando encosto o ouvido
ao peito do poema. Pudesse eu ficar assim, para sempre, nessa maré que
sobe sob os meus braços onde o teu corpo repousa, como
a gaivota imóvel no céu do amor; depois, colhendo as palavras
que florescem nos teus lábios, entrar no oceano familiar
de um horizonte apenas murmurando. "Que destino nos prometeu
um ao outro, neste horóscopo que nenhum astro mancha?" Isto é,
porque haveria uma constelação de interferir na esfera terrestre,
quando o seu lugar é num céu que os olhos não atingem? São
esses os signos que me falam, por entre as pedras antigas,
os muros arruinados, os bairros cegos de um subúrbio em que nos
perdemos, até me devolveres ao teu riso
que dissipa as sombras e ilumina as margens
do rio que corre entre nós. Assim, esta luz demora-se,
enquanto os meus dias passam, e a terra fértil da estrofe se deixa
embeber pelos doces líquidos de uma erosão de corpos. Cubro 
as suas pálpebras com a neblina do desejo; e deixo-me guiar pelos lábios
que procuram a saída do ocaso, até anunciarem essa eclosão
de madrugada em que um brilho branco irrompe do espelho,
para se derramar pelo lençol da página, de onde os meus dedos o colhem,
como a primeira flor deste dia; e entrego-a a ti,
a amada adormecida, para que a guardes
no secreto jardim do teu sonho.

de: Nuno Júdice



06 maio 2015

MÃOS DADAS






um dia me falaste,
e as árvores morriam galho a galho seco.
havia flores, recordo.
havia ruas,
aí também recordo.
e escadas
vazias.
não me falaste, não.
fui eu quem perguntou,
beijando-te tremente, quantos anos tinhas,
e o teu nome.
não tinhas nome; ou tinhas, mas não teu.
e a tua idade, as tuas mãos nas minhas

de: Jorge de Sena



28 abril 2015

ELE GUIAVA COM MÃOS CEGAS...




ele guiava com mãos cegas
a personagem que lhe tinham confiado
e sua voz ia apresentando
mais que o resto distante do seu corpo,
seguindo a pauta,
       - luz que era sua única via,
tão essencial como escassa, escura.

mas o que ele cantava era o extravio,
ser aí um estranho,
estar num palco a enfrentar
quem imóvel o perseguia nas trevas
desde quando inseguro principiara,
já não lhe importava quando nem porquê.

a máscara do seu canto iluminava
o rosto em que fora assumindo
uma loucura oculta:
rostos de muitos, ignorados,
um após outro, usurparam o seu,
que ele reconhecia no silêncio, sozinho.

pródigo, dissipara-se neles,
desfigurado pela ilusão
de holofotes, cartazes, claques dúbias,
        - poeira de um campo cujo termo
era longe, não sabia em que longe,
onde acaso ele se encontrasse
num outro, em muitos, em ninguém.

                                      e na sua frente a orquestra sufocante
                                      de ondas secas, sem praia, a persegui-lo.


de: José Bento
em: RESUMO [a poesia em 2011]




24 abril 2015

NOITE DE ABRIL





NOITE DE ABRIL

Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua. 

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste 
A noite de hoje veste 
Uma rua nova destruiu a rua do costume.

As coisas conhecidas de aventura. 
 Como se sempre nela houvesse este perfume 
E às vezes, o silêncio estremece
De vento leste e Primavera, 

A sombra dos muros espera 
 Alguém que ela conhece. 
Como se fosse a hora de passar alguém 
Que só hoje não vem. 

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I






09 abril 2015

SEM SEGREDO ALGUM



rodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,
vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.

a obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.

o que és não és, não há segredo algum.
selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
estou no interior da árvore, entre negros insectos.
sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.

de: António Ramos Rosa 
em: Volante Verde [1986]





03 abril 2015

NINGUÉM MEU AMOR





Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar 
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.


de: Sebastião Alba

[www.culturapara.art.br/opoema/sebastiaoalba/]