30 junho 2012

PENSAMENTO


PODEIS RECONHECER UM MAU CRITICO
PORQUE ELE COMEÇA POR FALAR DO POETA
E NÃO DO POEMA

Ezra Pound





27 junho 2012

ENTRE AS FOLHAS NEGRAS DA FIGUEIRA


Entre as folhas negras da figueira
e os erros do ofício 
passa o rio.

Que rio é esse?
Passa irmanado à luz pueril
dos cereais, à magoada
voz de quem perdeu o sono.

Leva com ele, entre o roxo
da sombra e as silabas contadas,
um verão de abelhas,
a profusão do mel.

Sigo-lhe os passos, perco-me
com ele.

Eugénio de Andrade

Fonte: http://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/1536/1/Eug%C3%A9nio%20de%20Andrade_uma%20proposta%20de%20plenitude_F%C3%A1tima%20Cordeiro.




26 junho 2012

TROVAS DE MUITO AMOR PARA UM AMADO SENHOR



Nave
Ave
Moinho
E tudo mais serei
Para que seja leve
Meu passo
Em vosso caminho.


Dizeis que tenho vaidades.
E que no vosso entender
Mulheres de pouca idade
Que não se queiram perder
É preciso que não tenham
Tantas e tais veleidades.
Senhor, se a mim me acrescento
Flores e renda, cetins,
Se solto o cabelo ao vento
É bem por vós, não por mim.
Tenho dois olhos contentes
E a boca fresca e rosada.
E a vaidade só consente
Vaidades, se desejada.
E além de vós
Não desejo nada. 

Hilda Hilst




24 junho 2012

CAMINHAR ERRANTE



Atarantados gesticulamos em torrentes de caos
Dormindo em angústia perpétua com o medo
Em amnésia total sobre a essência genética
Esbracejamos em rios de ganância pura
E a sociedade em agonia
Muito perto da loucura

Insanos os inertes
Mentecaptos os preguiçosos
Alienados os apáticos
Ineptos os vaidosos
Corruptos os parasitas
Traças que vivem da destruição
Comem famintas o que os outros edificam
Com esforço coragem e determinação

Cada poro do meu corpo sente a revolta
E abre-se incontido em inevitável mudança
Espraia-se no campo do conflito e da desavença
E cada traço do meu rosto é a marca
De um caminho sem regresso e pura descrença




12 junho 2012

PAISAGEM



Passavam pelo ar aves repentinas,
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,
Cuja voz, quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.
  
Sophia de Mello Breyner Andresen





09 junho 2012

PARAISO





DANTE NO PARAÍSO

... Enfim, transpondo o Inferno e o Purgatório, Dante 
Chegara à extrema luz, pela mão de Beatriz:
Triste no sumo bem, triste no excelso instante, 
O poeta compreendera o mal de ser feliz.

Saudoso, ao ígneo horror do báratro distante,
Ao vórtice tartáreo o olhar volvendo, quis
Regressar à geena, onde a turba ululante
Nos torvelins raivando arde na chama ultriz:

E fatigou-o a paz do esplendor soberano;
Dos réprobos lembrando a irrevogável sorte,
A estância abominou do perpétuo prazer;

Porque no coração, cheio de amor humano, 
Sentiu que toda a Vida, até depois da morte, 
Só tem uma razão e um gozo só: sofrer!

Olavo Bilac





08 junho 2012

NÃO TOQUES NOS OBJECTOS IMEDIATOS



Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.

Herberto Helder


07 junho 2012

SINTO-ME LIVRE PARA FRACASSAR


O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus.
Tentou na palavra o extremo-tudo
E esboçou-se santo, prostituto e corifeu.
A infância foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura.
A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito
Tempo-Nada na página.
Depois, transgressor metalescente de percursos
Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra.
Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar.
A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.
O Caderno Rosa é apenas resíduo de um “Potlatch”
E hoje, repetindo Bataille:
“Sinto-me livre para fracassar”

Hilda Hilst



03 junho 2012

[...] TANTO, TANTO, TANTO -




[...]
Pois, logo a mim tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera de mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. 
- Para que te servem essa unhas longas? 
- Para te arranhar de morte e para te arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. 
- Para que te serve essa cruel boca de fome? 
- Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor. Já que tenho que te doer eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. 
- Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? 


- Para ficarmos de mãos dadas pois preciso tanto, tanto, tanto - uivaram os lobos e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.


Clarice Lispector
em: Os Desastres de Sofia







02 junho 2012

PELO SONHO É QUE VAMOS



Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama




01 junho 2012

AMOR NO ÉTER



Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Aves pernaltas, os bicos
mergulhados na água,
entram e não neste lugar de memória,
uma lagoa rasa com caniço na margem.
Habito nele, quando os desejos do corpo,
a metafísica, exclamam:
como és bonito!
Quero escrever-te até encontrar
onde segregas tanto sentimento.
Pensas em mim, teu meio-riso secreto
atravessa mar e montanha,
me sobressalta em arrepios,
o amor sobre o natural.
O corpo é leve como a alma,
os minerais voam como borboletas.
Tudo deste lugar
entre meio-dia e duas horas da tarde.

Adélia Prado