29 junho 2014

A TRADUTORA





tu lês. antes de ti, ela muda as palavras. antes dela,
eu escrevo. eu passei por aqui, ela passou por aqui,
tu passas agora por aqui.

entendes isso? ela está onde tu estarás. eu estou onde
ela estará. eu corro pelas palavras, ela persegue-me.
tu corres atrás de nós para nos veres correr.

eu escrevo casa e continuo pelas palavras. ela segura
as letras da casa e escreve vida. tu lês vida e entendes casa
e vida. eu não sei o que entendes.

eu corro. ela corre atrás de mim. tu corres atrás dela.
não existimos sozinhos. sorrimos quando paramos,
quando nos encontramos. aqui.

José Luís Peixoto 
em: A Casa, a Escuridão






04 junho 2014

PROJECTO



Gabriel Bonmati

"desta vez vou escrever-te um poema que vai ser
um poema de amor, mas que não é apenas um poema de amor.

o amor, com efeito, é algo que não cabe num poema; pelo contrário,
o poema é que pode caber no amor, sobretudo quando te abraço, e
sinto os teus cabelos na boca, agora que a tua voz me corre pelos
ouvidos como, num dia de verão, a água fresca corre pela 
garganta. 
a isto, em retórica, chama-se uma comparação; e pergunto
o que é que o amor tem a ver com a retórica, ou porque é
que o teu corpo se tem de transformar numa metáfora - rosa,
lírio, taça, qualquer objecto que tenha, na sua essência, um
elemento que me possa levar até ele, como se fosse preciso, para te tocar,
substituir-te por uma outra imagem, ver em ti o que não és,
nem tens que ser, ou ainda transformar-te num lugar comum, que
é aquilo em que, quase sempre, acabam os poemas de amor.

assim, este poema de amor é, mais do que um poema de amor, um 
exercício para escrever um poema de amor - mas um poema de amor
a sério, sem comparações nem metáforas, só contigo, com o 
teu corpo, com a tua voz, com os teus cabelos, com aquilo que é
real, e não precisa de sair da realidade para se tornar objecto de
um poema de amor em que o amor, finalmente, deixe de ser
o objecto único do poema, que se preocupa acima de tudo com
a retórica, as imagens, o equilíbrio das formas.

mas, pergunto, não é o teu corpo uma flor? não é a tua boca uma rosa? não são lírios
os teus seios?
tudo, então, se transforma: e o que tenho nas mãos é uma imagem,
a pura metáfora da vida, a abstracta metamorfose das emoções.

o resto, meu amor, és tu - e é por isso que o poema de amor que te
escrevo, não é, finalmente, um poema de amor."

Nuno Júdice
in: poesia reunida - 1967-2000