23 março 2012

VOLTA AO MUNDO...





Abandona os gestos desnecessários, abandona
o peso e a forma do corpo, abandona o chão.
Tens altura suficiente para entrar. Podes
sentar-te à frente e podes levantar os braços nas
descidas. Subirás devagar, aproveita para ver
a paisagem. Descerás de repente, num instante de
onomatopeias: zut, vrrrum. Grita. Se quiseres,
podes gritar. O vento gritará ao teu lado.
Tens o cinto de segurança posto, já não podes
voltar atrás, já não podes abandonar o ritmo
a que bate o teu coração, o teu coração, o teu
coração. Respira, a vida é feita de estar vivo.
Não vás de olhos fechados, abre os olhos
e respira, repara neste momento da tua vida:
estás numa montanha-russa, mas nem estás
numa montanha, nem estás na Russia.

José Luís Peixoto
[publicado na revista "Volta ao Mundo" em Março de 2012]



20 março 2012

DURANTE A PRIMAVERA INTEIRA...


Não sei como dizer-te que minha voz te procura 
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite 
esplêndida e vasta. 
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos 
se enchem de um brilho precioso 
e estremeces como um pensamento chegado. Quando, 
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado 
pelo pressentir de um tempo distante, 
e na terra crescida os homens entoam a vindima 
— eu não sei como dizer-te que cem ideias, 
dentro de mim, te procuram. 

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros 
ao lado do espaço 
e o coração é uma semente inventada 
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia, 
tu arrebatas os caminhos da minha solidão 
como se toda a casa ardesse pousada na noite. 
— E então não sei o que dizer 
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. 
Quando as crianças acordam nas luas espantadas 
que às vezes se despenham no meio do tempo 
— não sei como dizer-te que a pureza, 
dentro de mim, te procura. 

Durante a primavera inteira aprendo 
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto 
correr do espaço — 
e penso que vou dizer algo cheio de razão, 
mas quando a sombra cai da curva sôfrega 
dos meus lábios, sinto que me faltam 
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer 
coisa extraordinária. 
Porque não sei como dizer-te sem milagres 
que dentro de mim é o sol, o fruto, 
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, 
o amor, 
que te procuram.

Herberto Helder
[excerto do poema "Triptico"]





12 março 2012

METAMORFOSES DA CASA



Ergue-se aérea pedra a pedra 
a casa que só tenho no poema. 

A casa dorme, sonha no vento 
a delícia súbita de ser mastro.
Como estremece um torso delicado, 
assim a casa, assim um barco. 

Uma gaivota passa e outra e outra, 
a casa não resiste: também voa.
Ah, um dia a casa será bosque, 
à sua sombra encontrarei a fonte 
onde um rumor de água é só silêncio. 

de: Eugénio de Andrade





02 março 2012

ESCREVO-TE COM O FOGO E A ÁGUA


Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.


António Ramos Rosa
Volante Verde - 1986