26 agosto 2012

... PALAVRAS DESLUMBRADAS...






[...]

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento 
E pela limpidez das tão amadas 
Palavras sempre ditas com paixão 
Pela cor e pelo peso das palavras 

Pelo concreto silêncio limpo das palavras 
Donde se erguem as coisas nomeadas 
Pela nudez das palavras deslumbradas 

- Pedra rio vento casa 
Pranto dia canto alento 
Espaço raiz e água 
Ó minha pátria e meu centro 

Me dói a lua me soluça o mar 
E o exílio se inscreve em pleno tempo. 

Sophia de Mello Breyner Andresen







20 agosto 2012

SÚMULA




Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma 
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas 
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

[...]

Herberto Helder




19 agosto 2012

NO FUNDO DO MAR



No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Sophia de Mello Breyner






16 agosto 2012

CARTA (Esboço)





Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.

Nuno Júdice





15 agosto 2012

FOTOGRAFIA





Eu, você, nós dois

Aqui neste terraço à beira-mar
O sol já vai caindo e o seu olhar
Parece acompanhar a cor do mar

Você tem que ir embora
A tarde cai
Em cores se desfaz,
Escureceu
O sol caiu no mar
E aquela luz
Lá em baixo se acendeu...

Você e eu 

Eu, você, nós dois

Sozinhos neste bar à meia-luz
E uma grande lua saiu do mar

Parece que este bar já vai fechar
E há sempre uma canção
Para contar
Aquela velha história
De um desejo
Que todas as canções
Têm pra contar

E veio aquele beijo
Aquele beijo
Aquele beijo 


Tom Jobim [letra]
Elis Regina [voz]





13 agosto 2012

CONSTRUÇÃO DA NOITE


No casulo há um homem
mas o fundo é o outro lado.
No casulo de seu tempo há um homem,
mas o fundo é o outro lado.
É o casulo onde o homem foi achado,
mas o fundo é o outro lado.
É o terreno onde o homem foi lavrado,
mas o fundo é o outro lado.
É a treva onde o homem foi fechado,
mas o fundo é o outro lado.
É o silêncio de um homem soterrado,
mas o fundo é o outro lado.
Mas o fundo é o outro lado.
É a infância que nasce sobre o morto,
é a infância que cresce sobre o morto,
é o sol que madruga no seu rosto,
é um homem que salta do sol posto
e convoca outros homens para o sonho
e mistura-se à terra
e mistura-se ao sonho.
E o canto recomeça além do sonho,
além da escuridão, além do lago.
Mas o fundo é o outro lado,
mas o fundo principia sem passado,
sem os montes, sem os barcos, sem o lago.
Tua vida verdadeira é o outro lado.
Tua terra verdadeira é o outro lado.
Tua herança verdadeira é o outro lado.
Tudo cessa.
Tudo cessa,
tudo cessa.
Mas o mundo
é o outro lado
que começa.

Carlos Nejar
[Antologia Poética]



11 agosto 2012

UM AMOR




 
Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

Nuno Júdice
[A Partilha dos Mitos]
 

 
 
 

 

07 agosto 2012

PERTENCEMOS JUNTO ÀS ÁRVORES



Ninguém me disse, contemplei e percebi tudo
Tive noção do que foi o passado, o nosso chão
E senti as vidas de outros tempos junto ao corpo
Dançando à chuva, numa existência verdadeira.

Pertencemos junto às árvores, onde se sente o equilíbrio
Onde o ar sabe melhor e é mais fácil respirar.
As raízes do que somos estão onde devem estar
Cravadas na terra, em comunicação com o universo.

Pertencemos junto às árvores e junto aos rios
Ninguém me disse, percebi tudo sem pensar.

Senti, em volta do corpo, a energia de outras existências
Das suas vozes, das suas mãos estendidas sem receio
Se fechar os olhos, sinto-a e tudo faz sentido

Pertencemos junto às árvores e junto aos rios.

Nuno Marques




PROCURO...

O LUGAR DA CASA
Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;

só um lugar

onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:

crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem

com o repentino canto da cotovia.

Eugénio de Andrade


ATÉ QUANDO A COTOVIA VOLTAR A CANTAR
NUM ACENO DE ATÉ LOGO



05 agosto 2012

"A CASA, A ESCURIDÃO"


Amor o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

José Luís Peixoto 
"A Casa, A Escuridão"








03 agosto 2012

AZUL - CORVO



Cogitei elegância. Não era elegância talvez uma certa desconfiança no ato de caminhar. Talvez aquela mulher nos lembrasse que é preciso fazer cerimónia com o mundo, que isto aqui não é brincadeira, que isto é coisa séria e perigosa, e que o simples gesto de pisar no chão já te confere uma responsabilidade inimaginável. Ou talvez fosse apenas seu jeito de caminhar e não tivesse nada a ver com responsabilidade e ninguém tivesse, aliás, nada a ver com isso.

de: Adriana Lisboa
AZUL – CORVO (…sobre a pertença – Luiz Ruffato)
[prémio José Saramago]