20 agosto 2014

BILHA






Assisti a um ritual da água. 
Estava num café em Barrancos, e num nicho na parede, junto ao balcão, repousavam duas bilhas de barro. 
Aparentemente inúteis. 
Velhas, encardidas pela sofreguidão das mãos que as levaram à boca. 
A minha ignorância urbana, julgava-as esquecidas, não lhes concedendo sequer as veleidades do artesanato. 
Que turismo se desloca a um café de Barrancos para ver duas bilhas abandonadas num nicho? 
À falta de espargos com ovos, saboreava um catalão assado, e foi quando me dei conta que os fregueses iam ao pátio encher as bilhas. 
Avaliavam entre si a frescura de cada uma, e levantavam-nas acima da cabeça. 
Bebiam como os vizinhos espanhois, deixando que a água lhes caísse directamente na boca. 
Sem que os lábios tocassem o gargalo. 
Mal os ouvia, e a discrição com que se saciavam, não me concedia a oportunidade de ouvir barranquenho. 
Creio que é aqui que há tocadores de pedras. 
Escolhem-nas entre os seixos do leito seco do Guadiana, e interpretam-nas à maneira que a sede os ensinou. 
Como só é possível entre povos que conhecem a graça da água.

de: Jorge Fallorca [1949-Abril de 2014]
do: Jornal da Poesia



11 agosto 2014

II CANTO-TE





Canto-te 
para que tu definitivamente
existas

Canto o teu nome porque só as coisas cantadas 
realmente são e só o nome pronunciado inicia 
a mágica corrente 
Canto o teu nome como o homem fazia eclodir 
o fogo do atrito das pedras 
Canto o teu nome como o feiticeiro invoca 
a magia do remédio 
Canto o teu nome como um animal uiva 
de 
Como os animais pequenos bebem nos regatos depois 
das grandes feras 

Canto-te 
e tu definitivamente existes nos meus olhos 
Sempre abertos porque é sempre os meus olhos 
são os olhos da criança que nós somos sempre 
diante da imensidão do teu espaço 

Canto-te
e os meus olhos sempre abertos são a pergunta
instante pendente de eu te interrogar 
e interrogo as coisas em seu ser noctumo
em seu estar sombriamente presentes na tua claridade
obscura 
E como é sempre 
meus olhos abertos perscrutam-te 
símbolo de tudo o que me foge
como apertar o ar dentro das mãos
e querer agarrar-te 
oh substância 

Canto-te
com a fragilidade de tudo que existe perante
uma eternidade demasiado nocturna para os nossos
olhos infantis perante a tua antiguidade 
futura 
E a nossa voz é uma pequena onda no dorso 
do teu oceano de matéria 
Um leve arrepio apenas na espantosa espessura 
de teu éter 
Ah no ar é que tudo acontece 
no ar nocturno das idades esquecidas 
que previamente desconheceremos 
No espaço é que tudo acontece 
e o espaço é uma grande 

muito quieta 
onde os nossos olhos penetram
no não sabermos até onde 
ali 
além 
no além onde tudo acontece 
Oh 

oh espaço de tudo ser tão ligeiro e impalpável 
e sermos nós a respiração da 
teu bafo ritmado 
imperceptível distância 
Oh 

augusta majestática dignidade do silêncio
Oh impassibilidade da tua mecânica celeste 
Oh organismo primeiro de todos os fins secretos 
da compreensão das coisas 
Oh inorgânico organismo dos seres 
que se devoram 
Oh 

diz
a quem servimos nós de pasto 

Canto-te 
como quem pronuncia o Mantra esotérico do teu nome 
Canto-te e grito 
para que a poeira que se infiltra em todas as 
coisas se erga de ti como um plâncton 
Oh Madre 
matriz das criaturas inferiores que rastejam 
a teus pés cobertas de pó 
esse pó que a cada momento ameaça submergir-nos 
Oh aranha enorme tecendo tua teia de pó 
Oh 

que desintegras tudo e tudo tu constróis
Ah 

como nós lambemos tuas duras mãos
Oh 

que fustigas nossos olhos com tua sombra
Enorme 
Oh 

que deixas tanto espaço para o silêncio 
das mil pétalas 
dos mil braços esplendorosos em seu abandono 
dos murmúrios 
dos afagos 
sangue derramado sobre o mundo 
Oh 

Porque és sempre tão premente? 
e sempre estás ausentemente 
na tua constância em todas as coisas? 

Oh sono
Oh

morte tão desejada e longa
mágica povoada de átomos 
milhões de espíritos enchem o teu sopro 
E penetras em nós como uma bala 
E tudo morre quando tu chegas 
E tudo se dilui e se transforma em ti 
alada presciência de tudo acontecer 
tão longe de nós e tão antigamente 
e tudo nos ultrapassar com soberana indiferença 
ante os nossos olhos cegos pelo teu negrume 
Oh
 
brilha para dentro de mim 
Acende teus luzeiros em meus olhos 
Ergue teus braços oh 
prenhe de tudo
Oh vaso 
Oh via láctea de nos amamentares com teu leite 
de sombra 
Oh 

úbere e pródiga
Aleita tua ninhada faminta 
Grande fera luzidia 
Grande mito 
Grande deus antigo 
Oh 

urna onde todos dormimos
Oh 

Meus olhos choram já de tanto perscrutar-te 
E canto-te 

Canto-te 
Para que tu existas 
E eu não veja mais nada além de ti 
E nada mais deseje senão que venhas outra vez 
levar-me para dentro do teu ventre 
de nunca mais haver 
E nada mais haver que 

Oh tu
definitivamente além

de: Ana Hathetly
em: Um Calculador de Improbabilidades