18 janeiro 2015

AUTOBIOGRAFIA




lembrando Rui Costa [1972-2012]

não preciso mas tu sabes como eu sou
encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
as pessoas quando acordam são outras, já sabias,
essa névoa contemporânea do medo miudinho
que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
tu bem sabes.
depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
e a minha vida mudou, a noite cresceu,
a vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
na luta perdi um ou dois braços,
mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
são corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
o gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
e profunda: sem braços e agora sem mais nada.
não me percebeste, enchi-me de fúria.
é uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
atraso – ah aqueles braços para apoiar as mãos ─ ,
ceifando. Saturno e o vento na proa erguendo.
o navio no mar parado, parado: completamente.
parado como dizer? Não dizer, eu sou uma vida
medonha e múltipla. E agora descanso
deitado nestas mãos que mexem
sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
p’la manhã.

de: Rui Costa
em: A Núvem Prateada das Pessoas Graves




10 janeiro 2015

ÁREA BRANCA





#37

Embrenho-me na área branca da noite.
Uma arena onde os acrobatas
viveriam com exuberância. O arame
atravessa já as minhas órbitas.
Um olhar saudoso percorre as últimas
formas.

Os elementos brancos, os aromas,
o vapor que oscila no fim da queda

de um fragmento. Segue-me a voz maviosa
que orienta os cegos. Reparo que me torno
homónima do poema. Abençoo o meu texto
que não me despreza. Os versos
que ainda amarfanho. A vida cruel nas áreas
contaminadas pela ininteligibilidade.

de:Fiama Hasse Pais Brandão
[Março 1977]
em: ÂMAGO