30 novembro 2012

LYA LUFT


 
  
Alguém joga xadrez com minha vida,
alguém me borda do avesso,
alguém maneja os cordéis.
Mordo devagar
o fruto desta inquietação.
(Alguém me inventa e desinventa
como quer: talvez seja esta a minha condição.)

Bastaria um momento de silêncio
para eu ser feliz:
mas do fundo do palco
uma voz me chama.
Serás tu, amor,
ou é a morte, apenas, que reclama?

Lya Luft
 
fonte:
 
 
 

TEATRO DE SOMBRAS

Alguém joga xadrez com minha vida,
alguém me borda do avesso,
alguém maneja os cordéis.
Alguém me inventa e desinventa
como quer:
talvez seja esta a minha condição.

Alguém dirige o teatro de sombras
no qual fui ré setenciada.
Finjo entender de tudo:
ando de um lado e outro,
faço gestos com a mãos,
cuspo as sementes do fruto
entalado na garganta
com um grito: Alguém aí pode me ouvir?

Ninguém reage, ninguém tenta aplaudir:
nesse reino todos usam disfarces,
menos a solidão.

Lya Luft
 
fonte:

 
 
 
obs: eu apenas conhecia a segunda versão deste poema, estranhei encontrar a primeira que, confesso, desconhecia, deixo as duas aguardando ensinamento.
 
 
 

23 novembro 2012





MOVIMENTO

movimento de alma 
silêncio, emoção 
de doçura meia, 
essa tua palma 
sobre a minha mão 
o que tem que eu leia? 

para lá da floresta 
onde as coisas são 
sem minha licença, 
mais linear que esta 
confusa razão 
da tua presença 

não há outro sim 
que não tem dizer 
e é mais movimento? 
qualquer coisa assim 
como um tempo sem fim 
como um espaço sem tempo 

Mário Cesariny 






20 novembro 2012

REGRESSO À CAVERNA DE PLATÃO



no conflito entre o poeta e o filósofo,
ensina Platão que não se deve fixar o sol
porque, depois de o fazer, ofuscados
pelo brilho intenso, não nos habituamos
aos objectos comins, e assim nos perdemos
das coisas reais, após a revelação
da verdade celeste.

ée então que o homem, ainda com o peso
da luz no espírito, tacteia em roda, procurando
a saída, e encontrando apenas as sombras,
que o empurram de um para outro lado,
como um simples boneco, fechando-o
para o mundo inteligivel, de que sente
a nostalgia e o desejo.

por um lado, o filósofo compreende
esta situação, e desenvolve um raciocínio
cujo enncadeado dialéctico o conduz a uma
alegoria: prisioneiro expulso da luz
pelo excesso de luz, o homem sente mais
profundamente a sua miséria, agora que
descobriu a obscuridade e os limites
do mundo, na gruta que o prende. é aqui,
no entanto, que o poeta perturba
a lógica do pensamento.

com efeito, o poema corresponde à luz
do sol, com a sua plena revelação do absoluto,
sem provocar a cegueira. Pelo contrário,
é nele que nos movemos à vontade, sem precisarmos
de saír do mundo para deescobrir a sua evidência,
por outro lado, as suas imagens são um reflexo luminoso
de tudo o que, na realidade, nos parece incompleto
e sombrio. «então», diz o poeta,
«para quê fixar o sol, se as minhas palavras
reproduzem a sua luz?»

«por isso», responde o filósofo, «não tens lugar
na minha república. não convém dar a vista
aos cegos, quando a minha função é guiá-los,
nem dizer-lhes que o sol está ao alcance da mão,
quando é através de mim que o devem
atingir.»

por vezes, o conflito de interesses
sobrepõe-se à razão; e, no erro do filósofo,
a sombra do mundo do mundo impede que a luz da verdade
se imponha no espírito, fazendo com que
a falsa dialéctica se desenvolva até ao fim
mais absurdo.

Nuno Júdice
«Geometria Variável»



17 novembro 2012

OUTONO






uma lâmina de ar
atravessando as portas. Um arco,
uma flecha cravada no Outono. E a canção 

que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas. 
E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como
uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio. 

É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
quando saio para a rua, molhado como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
cumprimenta o sol. Procura-se viver.


Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
Como se, de repente, não houvesse mais nada senão
a imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
que a minha boca recusa. É outono
a pouco e pouco despem-se as palavras.

Joaquim Pessoa







15 novembro 2012





quando as aves falam com as pedras 
e as rãs com as águas 

- é de poesia que estão falando

Manoel de Barros






11 novembro 2012

- AS PALAVRAS FALHAM, E ESSA É A COMUNICAÇÃO





Aqui o mar é sono perpétuo, 
câmara para o mais terrível segredo.
Entro nele de mãos trémulas, certo
das minhas cedências. Recordo o sabor 
salino de outras perdas, casas tombadas
das quais sou solitária ruína.


Eu, que tenho dado à insónia,
embebo-me agora nas águas de outro dialecto

- as palavras falham, e essa é a comunicação.



de: Vasco Gato






09 novembro 2012



Este poema de amor
é bilhete sem destino
Não sei a quem entregá-lo
Não há nome no envelope
nem rua, nem direção
Ternura jogada fora
saudade apenas, sem fatos
que se possam recordar
este poema de amor
reincidente e insano
joga sal no oceano
transpira lençóis de insônia
esboça os traços de um rosto
traceja a forma de um corpo
apaga, torna a fazer
Vento vago que levanta
e logo depois deposita
palavras soltas, papel
este poema,
eu mesma,
este poema é ninguém.
 
de: Ana Mariano
 
 
 
 
 

05 novembro 2012

MÚSICOS DE RUA


as duas faces da moeda
[não resisti a este poema que achei encantador
encontrei-o por mero acaso, na net,
não sei o nome da autora]

Lá na minha rua eu podia ser tudo...
Bandida, mocinha, princesa, rainha...
E quando vencia qualquer brincadeira,
Eu era aclamada de "a heroína"!

Lá na minha rua eu podia ser tudo
Ter asas, voar, ser um passarinho...
Em árvores pousar, construir o meu ninho,
Cair, machucar e voltar a sonhar.

Ser bruxa malvada, uma feiticeira,
Pular e gritar ao redor da caldeira
Ver olhos de espanto de uma criançada,
Fugindo correndo da tal caldeirada.

Lá da minha rua eu podia ver tudo,
Um céu pintadinho de estrelas-cadentes,
A lua pertinho do final da rua,
Piscando, sorrindo, mostrando-se nua.

Lá na minha rua deixei registrada
Uma infância feliz, onde podia tudo,
Rua de pedrinhas, de luz, de brilhantes...
Rua dos meus sonhos, meu marco, meu mundo!!!









02 novembro 2012

ENTREI NO CAFÉ COM UM RIO NA ALGIBEIRA




Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
-onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino


**


Chove...
Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira
[1900-1985]