29 dezembro 2013

FELIZ ANO NOVO!



imagem da net


Procuro um texto impossível,
um outro caminho para a salvação.

Procuro a palavra que nos una definitivamente, o poema
escrito no barro da alucinação, a palavra que cresce da terra
e atinge a noite com pancadas de luminosa alegria.

Procuro o teu rosto, a chave do segredo inviolável, a súbita
haste de uma flor com o teu nome, lírio, lume, lucerna, a pressão
sobre a página que vem reabilitar
a memória de que somos feitos.

Procuro os teus lábios, a cálida gruta
das tuas mãos, a árvore da vida, lágrima
e luz transgredindo o trajecto entre uma ausência e outra,
murmúrio e estremecimento.

Procuro os teus olhos, procuro a profundidade dos teus olhos,
a euforia que vive no fundo dos teus olhos, os íntimos
sinais de selvagem serenidade
com que recebes quem te olha nos olhos, a ternura,
a violenta ternura dos teus olhos.

Procuro o espaço onde prolongar o sonho para além da manhã,
o rio subterrâneo que exorciza o abismo, a ave
que grita entre as ravinas das trevas, o esplendor
da planície, a chuva
áugure.

Um barco ou uma pedra,
procuro.

de: Amadeu Baptista





22 dezembro 2013

NATAL E NÃO DEZEMBRO





Entremos, apressados, friorentos, 
numa gruta, no bojo de um navio, 
num presépio, num prédio, num presídio 
no prédio que amanhã for demolido... 
Entremos, inseguros, mas entremos. 
Entremos e depressa, em qualquer sítio, 
porque esta noite chama-se Dezembro, 
porque sofremos, porque temos frio. 

Entremos, dois a dois: somos duzentos, 
duzentos mil, doze milhões de nada. 
Procuremos o rastro de uma casa, 
a cave, a gruta, o sulco de uma nave... 
Entremos, despojados, mas entremos. 
De mãos dadas talvez o fogo nasça, 
talvez seja Natal e não Dezembro, 
talvez universal a consoada.

David Mourão Ferreira










10 dezembro 2013

PARTES DE UM TODO




Duy Huynh


Esta tarde, sentado no banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois do jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.

Luís Filipe Parrado

edição DOCUMENTA
[poesia escolhida em 2011]








04 dezembro 2013

FRANCISCO DE SÁ CARNEIRO


AINDA ESTÁ VIVO NAS NOSSAS MEMÓRIAS



E ACTUALISSIMO, ESTE ARTIGO, APESAR DE TER SIDO PUBLICADO EM 2010! 

Francisco Sá Carneiro morreu há 30 anos no dia 4 de Dezembro de 1980. Eu era ainda um petiz, mas lembro-me perfeitamente de estar nesse dia à noite, de visita a casa de uma tia minha na Levada de Santa Luzia, onde a sua televisão a preto e branco, tornara-se o centro das atenções de toda a família.
Na altura apenas com 11 anos, percebia que "aquele senhor" do governo morrera de avião...Mais nada.
No último número da revista Visão(n.º 926 de 2 de Dezembro), Miguel Carvalho assina um artigo interessantíssimo sobre Sá Carneiro e relembra algumas frases proferidas pelo desaparecido Primeiro-Ministro, que eu desconhecia, mesmo antes de eu militar no seu partido no final da década de oitenta entre festejos de amigos, muito diferentes da profunda desilusão com alguns adulteraram e traíram o seu ideal, apesar de invocarem o nome de Sá Carneiro em todas as ocasiões...
Creio mesmo que Sá Carneiro não identificaria hoje o seu legado neste Portugal dos nossos dias, sobretudo daqueles que de entre as suas fileiras, ostentam a sua imagem nos núcleos partidários...
Eis, pois algumas das frases atribuídas a Francisco Sá Carneiro:

  • «Se nos demitirmos da intervenção activa, não passaremos de desportistas de bancada, ou melhor, de políticos de café.» - 1.º discurso político integrado na campanha para as eleições - Teatro Constantino Nery, Matosinhos, 12 de Junho de 1969
  • «Somos um povo conformista (...) Vamos aceitando tudo e procurando no verbalismo dos colóquios a paz da boa consciência (...)» - Expresso-«Visto»-Dezembro de 1973 (cortado pela censura e publicado a 4 de Maio de 1974)
  • «Na sua evolução para um sistema mais justo é necessário o continuado reforço do poder dos trabalhadores na economia (...)» - Entrevista a O Século - 6 de Junho de 1974
  • «Há que impor uma disciplina de actuação do poder económico e dos investimentos, para que ele seja feito com proveito para todos nós e não apenas para os detentores desse poder» - Entrevista ao Diário Popular - 8 de Julho de 1974
  • «Não vejo como uma via neocapitalista ou neoliberal possa dar solução às graves contradições e desigualdades com que se debate a sociedade portuguesa» - Entrevista ao Século Ilustrado - 30 de Novembro de 1974
  • «Quem tenha o mínimo de conhecimentos da história da humanidade ou esteja atento ao panorama social em que vive, não pode evidentemente ignorar a luta de classes» - Entrevista a A Capital - 21 de Junho de 1975
  • «O povo português nunca teve os dirigentes que mereceu» - Conferência de Imprensa - 28 de Novembro de 1975
  • «É necessária uma política de austeridade. Mas impõe-se que essa política de austeridade não recaia, especialmente, sobre as classes trabalhadoras (...) É preciso que ela se integre numa política de relançamento da nossa economia. Sem isto não há austeridade que valha a pena» - Entrevista a O País - 3 de Março de 1976
  • «Não me considero uma figura carismática, nem tão-pouco penso que essas figuras sejam absolutamente essenciais. Antes pelo contrário (...)» - Entrevista a A Luta - 23 de Abril de 1976
  • «Uma Comunidade [Europeia] entendida como grupo de países ricos, autosuficientes, divididos dos países menos desenvolvidos do Sul da Europa, marcaria uma condenável divisão entre Norte e Sul (...)» - Intervenção na A.R. - 10 de Novembro de 1977
  • «Numa sociedade em regressão económica acentuada e em que o desemprego muito alto se combina com uma alta inflação, é natural e justo que os trabalhadores procurem assegurar a estabilidade dos seus empregos através de um estatuto de protecção legal que impeça totalmente os despedimentos, por exemplo, ou que dificulte de tal modo que lhes dê segurança.» - Entrevista ao Jornal Novo - 23 de Fevereiro de 1977
  • «O nosso Povo tem sempre correspondido, nas alturas de crise. As elites, as chamadas elites, é que sempre o traíram (...)» - Discurso no convívio do Vimieiro - 2 de Abril de 1978
  • «Gosto demasiado da política para ser Presidente da República» - Entrevista à revista Cambio - 4 de Dezembro de 1980 (dia da sua morte)
Todas estas frases recolhidas pelo Miguel Carvalho são quase que visionárias a propósito da completa adulteração daquilo que Sá Carneiro queria para os portugueses. O mais triste e até vil, é que aqueles que sempre o invocam e pretendem sempre se colar ao ideário do antigo líder, são quase sempre os mesmos que seguem um caminho diferente e contrário - como agora se viu no recente acordo alcançado - que não só traem a sua memória, como também o próprio Povo e os "Trabalhadores" (uma denominação arredada do vocabulário tecnocrata da política moderna)... 





24 setembro 2013

À SOMBRA DE UMA ÁRVORE O TEMPO JÁ NÃO É O TEMPO MAS A MAGIA DE UM INSTANTE QUE COMEÇA SEM FIM



ANTÓNIO RAMOS ROSA



Cada árvore é um ser para ser em nós
Para ver uma árvore não basta vê-la
A árvore é uma lenta reverência
uma presença reminiscente
uma habitação perdida
e encontrada
À sombra de uma árvore
o tempo já não é o tempo
mas a magia de um instante que começa sem fim
a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas
e de sombras interiores
nós habitamos a árvore com a nossa respiração
com a da árvore
com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses


in: CADA ÁRVORE É UM SER PARA SER EM NÓS
  [2002]






o mundo cabia inteiro na sua mão




13 agosto 2013

in: DE AMOR ARDEM OS BOSQUES



XII
No lago mais profundo repousa a jóia do bosque.
é esta a última palavra

[do coração dos bosques pag. 97]
Maria Azenha

II
Olhou o pão na mesa e deixou cair
as mãos como sementes
para que tudo crescesse a partir
do chão

olhou o mar

e viu as lágrimas 
das trevas
iluminadas pelo firmamento

depois sentiu que se fechasse os olhos
por um pequeno instante
tudo voltaria ao caos

as mães têm as mãos grandes

[das clareiras dos bosques pag. 73]


VIII
O poeta sabe como Deus transbordou do escuro
e nasceu de uma nuvem de solidão e exílio

[como respirou e dormiu
e estendeu os braços ao longo dos rios]

com árvores e ombros
e mãos para lavrar o azul
partiu-se
em mil bocados.

que neles ninguém se fira

[das sombras dos bosques pag. 63]
Maria Azenha




"conciliando o sonho"
Vladimir Kush



03 agosto 2013

in: ÂMAGO

 
  
 
amor é o olhar total, que nunca pode ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão só próprio e bastante, em si mesmo absoluto e táctil,
que me cega, como a chuva cai na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.



fui criança, indo por um carreiro,
a caminho do mar, mão na outra mão,
entre árvores, pedras, insectos e aves.
toda a natureza me coube nas pupilas,
mestra de sentimentos, e eu discípula.
e, se fechava os olhos, ela punia-me
com o silêncio cruel das ondas,
a mudez imerecida dos insectos,
e a distância das aves, que doía.
se os abria, tudo me rodeava,
apaziguado e meu,
mas a mão que me trazia a mão
puxava-me para a luz de cada dia.

 
Fiama Hasse Pais Brandão
[cenas vivas]
 
 
 
 
 

25 julho 2013

FIAMA

  

 
 
O NOME LÍRICO
 
Esta manhã
hoje
é um nome
 
Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca
 
Uma palavra
palavra só
a ergue
 
Com um nome
amanhece
clareia
 
Não do sol
mas de quem
a nomeia
 
 
 
 

20 julho 2013

in: O VINHO E A LIRA


 
Vladimir Kush
 
 
venho simplesmente dizer
que uma laranja é uma laranja
e comove saber que não é ave
 
se o fosse não seriam ambas
uma só coisa volátil e doce
de que a ave é o impulso de partir
e laranja o instinto de ficar.
não sei de nada mais eterno
do que haver sempre uma só coisa
e ela ser muitas e diferentes
e cada coisa ternamente ocupar
só o espaço que pode rodeada
pelo espaço que a pode rodear.
 
sei que depois de laranja
a laranja pode ser até
mesmo laranja se necessária
mas cada vez que o for
sê-lo-á rigorosamente
como se de laranja fosse
a exacta fome inadiável.
 
de ser laranja gomo a gomo
o íntimo pomo se enternece
e não cabe em si de amor
embriagada de saber
que a sua morte nos será doce.
 
de: Natália Correia


 
 

16 julho 2013

 
 
A MULHER
 
[...]
sob a melhor luz, o seu melhor lado.
a despir-se de vestidos feitos de tudo
e à mão, feitos por ela. carmim
e amarelo torrado: as cores que prefere,
salpicadas de brilhos imensos e enormes
cornucópias. em volta do pescoço,
pequenas contas de ambar e dois
guizos num dos tornozelos. um toque
de coqueteria, um outro de embaraço.
 
quero uma mulhar assim, de silêncios
venenosos, que me morda o tendão
do ombro e a língua, e abuse
de declarações de guerra e paz,
 vá para o inferno e regresse
no meio de um mar de boatos,
e me arraste em jogos de malícia,
me esconda o coração e me deixe
doido dias inteiros atrás de pistas
e coordenadas.
 
não quero uma mulher explicada,
prefiro o assombro. antes aturar
mistérios, teimas, transes e jejuns,
mesmo às vezes a troça e o desprezo,
e que quando se sinta enfastiada
fuja sem aviso ou se feche parindo
a escuridão.
 
que me adore e se farte, me empurre
do alto das escadas, e se ria perdidamente
ou chore e me asfixie devagarinho
com os primeiros cabelos que lhe
nasçam brancos. quero até esse dia
em que se chegará tristemente
para pedir-me a mão logo depois
que o seu rosto se retire para sempre
de todos os espelhos.
 
no fim, nem me importa
que nunca venha a cruzar-se comigo,
que isto eventualmente ainda seja eu
a roubar acessórios em lojas
de senhora. pelo menos não será
uma coisa que se explique nem alguém
que tenha a descortesia de dizer por aí
que chegámos a um entendimento.
 
 
de: Diogo Vaz Pinto
in: RESUMO a poesia em 2011
[antologia - Documenta - FNAC]
 
 
 
 
 
 
 
 

11 julho 2013

A NÚVEM PRATEADA DAS PESSOAS GRAVES

 
 
Raquel Martins

Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo
dos pés e por isso do outro lado do mundo.
O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés
e mais longe ainda das mãos
que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos
se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é.
Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias
quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas
pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo
que foram ou das pessoas que amaram.
Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no
chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, dessas
pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.
 
Rui Costa
 
 



 

30 junho 2013

CURTAS LETRAGENS [...também nossos filhos, outros filhos...]



como se diz AMO-TE:

- com o coração, num sopro quente
- de olhos nos olhos das feridas que não sabemos sarar
- com sorrisos a escorrer ternura do olhar
- num colo, num abraço, num gesto puro


da Plátano Editora
num carinhoso entrelaçar de mãos de vários jornalistas


VALE A PENA AJUDAR
Associação As Florinhas da Rua


http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218799127Z7uLZ4su1Vg14KQ1.pdf

 A assistência social e familiar do Estado Novo nos anos 30 e 40**

 De: Irene Flunser Pimentel*





os autores deste livro, todos ligados à comunicação social, sensíveis à exclusão e ao sofrimento de imensas crianças, decidiram dar este pequeno contributo, esperançados em atenuar esse mundo doloroso e cheio de perguntas impossíveis de responder, porque não se explica a um inocente, a um abandonado, seja ele orfão, deficiente ou na plenitude das suas capacidades, o inexplicável.

forçados a conviver de perto com esta cruel realidade, com esta forma de guerra desumana, e quantas vezes escondida, que exige combater com carácter urgente, lançámo-nos pedagógicamente a este projecto. essas meninas e esses meninos indefesos, merecem que todos nós lhes proporcionemos coisas simples, como peças de roupa e brinquedos, e que as peguemos ao colo como se fossem nossos filhos.

obtida a adesão da Plátano Editora, faltava-nos encontrar uma instituição a quem doar os nossos direitos de autor. pairava no espírito de todos a ideia de o fazer junto de quem não usufruísse de apoios oficiais - apesar de sempre escassos -, tenham eles o rosto que tenham. feitas as pesquisas, por votação, a maioria fez recaír a opção numa organização que se dedica à recolha e apoio a crianças orfãs e de risco.

Florinhas da Rua!

de: Os Autores







  

26 junho 2013

NÃO ENTENDO

 
SORRI porque:
ESTÁS A SER FILMADO!!!...
 
 

TOKAGE
Fabien Delaube
[imagem da net]


Não entendo.
Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.
Entender é sempre limitado.
Mas não entender pode não ter fronteiras.
Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom.
Não entender, mas não como um simples de espírito.
O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida.
É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.
Só que de vez em quando vem a inquietação:
quero entender um pouco.
Não demais:
mas pelo menos entender que não entendo.

Clarice Lispector
[Á Descoberta do Mundo]


 
 
 
 
 

24 junho 2013

O BEIJO DE GUSTAV KLIMT

 
 
 


O BEIJO É SÓ UMA PALAVRA
ESCOLHIDA
AO ACASO. O QUE AS TINTAS
ENCOBREM E DESCOBREM
E OS PINCEIS REVELAM,
MAS NÃO NOMEIAM,
É A ORDEM
QUE SE PRESSENTE EM TODAS
AS NEBULOSAS. QUE SEMPRE
A ORDEM PRECEDE
A DESORDEM. E ESSA
É UMA DAS LEIS
INDECLINÁVEIS
DO AMOR. A SUA REGRA
DE OURO, QUE NÃO ADMITE
EXCEPÇÕES.


Albano Martins
 
 
 
 
 

22 junho 2013

ARTE POÉTICA

 


"o poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não
se escrevem, Lê-se país e mar e céu esquecido e
memória, lê-se silêncio, sim tantas vezes, poema lê-se silêncio,
lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu
olhar doce de menina, silêncio ao domingo entre as conversas,
silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio
de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema
calado, quem o pode negar?,que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é quando eu podia dormir à tarde nas férias
do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu
fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não
conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a
letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do
quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel
e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas
e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças
e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre tudo.
o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama
poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de
si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para
abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo
o que quero aprender se o que quero aprender é tudo,
é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,
não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são
bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a
raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos
conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um
torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre
os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema
porque a palavra poema é um palavra, o poema é a
carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre
os telhados na hora em que todos dormem, é a última
lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança.
o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,
tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se
com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e
incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo
para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por
mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares
onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me
olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido. "

José Luís Peixoto
"Criança em Ruínas"

 

 

13 junho 2013

NÃO ACREDITES...



[...]

não acredites neste breve sono;
 não dês valor maior ao meu silêncio;
 e se leres recados numa folha branca,
 não creias também: é preciso encostar
 teus lábios em meus lábios para ouvir.
nem acredites se pensas que te falo:
 palavras
 são o meu jeito mais secreto de calar.

Lya Luft



06 junho 2013

CAL

 
 
  
... ana molhou uma toalha no alguidar e envolveu a mão do fugitivo
onde faltava o dedo médio e o indicador... na sua pele o sangue era mais claro
do que na toalha. na toalha, tinha a côr de um grito de sangue. na pele, era
como se fosse a memória do sangue.
 
... os olhos de ana não tinham idade e, quando reparou que os olhos daquele
homem também não tinham idade, o sangue parou de embeber a toalha.
 

quando chegou março,
nasceram flores nos campos.
debaixo da azinheira nasceu
uma única flor.
                 era uma flor bravia
as raízes dessa flor
atravessavam a terra, eram
longas, e entravam dentro do
corpo do mudo. aquilo que
tinha sido a vida do mudo
entrava por essas raízes
e corria dentro dessa flor.
ninguém sabia, mas o mudo
era essa flor. continuava
mudo. as suas roupas pretas,
apodrecidas debaixo da terra,
eram pétalas brancas. os fios
da sua barba, misturados com
a terra, eram pétalas brancas.
a cadela, sem saber que ele
era uma flor, continuava
perdida pelas ruas da vila.

José Luís Peixoto


 
 

01 junho 2013

ESTRADA DE FOGO




 
pedra a pedra a estrada antiga
sobe a colina, passa diante
de musgosos muros e desce
para nenhum sopé;

encurva, na abstracta encruzilhada;
apaga-se, na realidade. morre
como o rastilho de fogo,
que de campo em campo aberto

seguia, e ao bater na mágica cancela
dobrava a chama, para uma respiração,
e deixava o caminho do portal
incólume e iniciado.
 
Fiama Hasse Pais Brandão
 
 
 
 
 

30 maio 2013





estava sentada no meio do café, com as mesas cheias
à sua volta. estava sózinha, e o olhar perdia-se
entre o ar e o balcão, fingindo estar atenta
ao que se passava, como se alguma coisa se
passasse entretanto. tinha tomado o café; e o copo
de água estava cheio, ao lado de um cinzeiro
que não servia para nada, porque não fumava.
 
segui a direcção dos seus olhos, vendo o vazio
formar-se no lugar em que os meus e os dela
se cruzavam, nessa zona branca do café em que
o fumo dos cigarros absorvia as conversas e
o barulho das chávenas. e deixei-a estar por
algum tempo, na ilusão de que estava sózinha,
até olhar para a porta, de onde alguém viria.
 
não fiquei para saber se quem chegou era quem
ela esperava, ou se continuaria a fixar o
horizonte da parede onde um relógio insistia
em pontuar o tempo. e continuo a vê-la,
puxando o cabelo para trás, num gesto de quem
julga que alguém vai chegar, sem saber que
quem havia de chegar a deixou sózinha, comigo.
 
Nuno Júdice
 
 
 

 

27 maio 2013

OFEREÇO-TE PALAVRAS




 

Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo
este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido

está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á
a última coincidência que nos une.

Maria do Rosário Pedreira


 
 
 
 

19 maio 2013

 
 


e tu,
vais-te embora? vais-te embora?...

não,
não te vais embora: fico contigo…

deixas-me nas mãos a tua alma,
como um casaco.


de:  Marguerite Yourcenar
aqui: http://falsolugar.blogspot.pt/2007/04/





 
 

14 maio 2013

RESISTIR





 dobrar na boca o frio da espora
calcar o passo sobre lume
abrir o pão a golpes de machado
soltar pelo flanco os cavalos do espanto
fazer do corpo um barco e navegar a pedra
regressar devagar ao corpo morno
beber um outro vinho pisado por um astro

 possuir o fogo ruivo sob a própria casa
numa chama de flechas ao redor.

 Joaquim Pessoa





10 maio 2013

ORIENTE



 

manda-me verbena ou benjoim no próximo crescente
e um retalho roxo de seda alucinante
e mãos de prata ainda (se puderes)
e se puderes mais, manda violetas

 (margaridas talvez, caso quiseres)
manda-me osíris no próximo crescente
e um olho escancarado de loucura
(em pentagrama, asas transparentes)

 manda-me tudo pelo vento:
envolto em nuvens, selado com estrelas
tingido de arco-íris, molhado de infinito
(lacrado de oriente, se encontrares)

de: Caio Fernando Abreu
 
 
 
 
 
 

05 maio 2013

MÃES, QUE FOMOS, QUE SOMOS, QUE SEREMOS!...

 
 
 
SILOGISMOS

A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.

Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaços e tempo,
nem sequer em morte.

A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?

Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.

(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)

De: Ana Luisa Amaral
 
 
 
 
 

03 maio 2013

VOZES MINHAS




O súbito fraseador que mimava
a sua fala pela do vento
não me disse Heraclito fui,
tal como eu o pensei.
Disse só deste lado do recorte
da serra sopra mais.
Ouvir por dentro. Clarear
traços que nos separam
da figura falante. O amanho
da Terra liga-nos.
Ouvinte do vento, não me
disse como eu: Verdade
e substância, na primeira apanha.
Quietude. Êxtase, na eclosão.

Cavou ao longo da esticada corda
que orienta as leiras. Esteve
em movimento ali um dia: Ó terra,
tudo está nos sentidos
antes do senso, voz certa,
som áspero, vento de rajadas grossas.

Fiama Hasse Pais Brandão
"Três Rostos - Ecos"


25 abril 2013

QUEM AMA A LIBERDADE...


Cravo de Abril
[imagem da net]

Quem ama a liberdade conhece que é idêntica
a verdade e a não-verdade o ser e o vazio
e por isso na sua celebração a metáfora expande-se
na liberdade de ser a ténue sabedoria
desse momento e só desse momento em que o arco cresce
Há então que procurar a chuva dessa nuvem
ou desdizê-la não para o nosso olhar
mas para um outro rosto de areia que cresce no vazio
e poderá ser de pedra ou de ouro ou só de uma penugem
O poema é o encontro destas duas faces
de nenhuma substância quando no vazio do céu
os anjos se diluem com as mãos despojadas

António Ramos Rosa
[As espirais do silêncio]






18 abril 2013

DOS PINHAIS






ondulando, os pinhais
quiseram ser o mar.
murmurando, quiseram ser
o vento. mas somente
no meu ouvido eram vento,
nos meus olhos, mar.

e hoje, ali na encosta,
pinhais bordejam
o mar, sustêm o vento.
 
Fiama Hasse Pais Brandão
 
 
 

09 abril 2013

EPISÓDIO MUSICAL




 
ao ouvir as suites inglesas de Bach, a humidade
dos campos envolve-me, com uma névoa de rios
e uma auréola de margens. esta música puxa-me,
pelas suas mãos de som, para o ritmo que o poema
devia encontrar no limite dos teus cabelos; e tu,
contra o portão, nesse contraluz que te incendeia
o vermelho da túnica sobre o fundo branco dos
muros, roubas ao cravo o seu sorriso profano,
plantando nas suas teclas um desejo que o jardim
do teu corpo fará florescer. assim, vens até mim
pelos degraus deste ritmo que Bach inventou,
para descrever não se sabe que dança, movimento
de saias com vento, baloiço vago que se evola
de uma entrega evanescente, num canto de arbusto,
até ao silêncio branco com que o amor se fecha.
 
Nuno Júdice
 
 
 
 
 
 

31 março 2013

CANÇÃO DESSE RUMOR

 


quem - estando ausente - entra no quarto
 quem deita ao lado meu, quem passa
 no meu coração seus lábios quentes, quem
 desperta em mim as feras todas
 quem me rasga e cura
 quem me atrai?


 quem murmura na treva e acende estrelas
 quem me leva em marés de sono e riso
 quem invade meu dia após a noite
 quem vem – estando ausente -
 e nunca vai?
 
Lya Luft
 
 
 
 
 

29 março 2013

CATÁLOGO BOTÂNICO DA PRIMAVERA

 

 
Principia a estação, com o seu ruído
feito de sons de pássaros, que eu decifro.
Mais difícil sinal são as cores várias,
que despontam cada dia e eu vejo,
ano após ano, iguais e singulares.
Primeiro, um pouco além, o lírio roxo,
que me traz consigo a criança viva
que o colheu e, tal como a um barco,
o fez singrar, só, roxo, macerado,
na água que descia por um rego.
Um lírio com a mão que o cortara
já decepada e presa ao passado,
sem o seu corpo. Vejo as três pétalas
assim a confundir-se com os três dedos,
como se as nossas mãos por vezes vivessem
mais do que os passados corpos.
Depois, foi esta a manhã das camélias
brancas, cravadas com dureza em rostos,
que, ainda de olhos fechados, tocam
as corolas em busca do seu cheiro.
São camélias mortais, e ainda atraem
a face dos mortos, que algum dia
as bafejaram com o seu hálito próximo.
Manchas brancas de círculos informes,
cada círculo contendo outro círculo.
E, no centro de cada rosto, apenas,
em cada Primavera, duram os olhos.

Já caem as glicínias, de alto, sobre
o esplendor do crânio ou do cabelo.
São cachos também roxos, em manhãs
de assombro, por cada dia mais
trazer um diverso cacho pendente.
Misturam-se com a cabeleira antiga
estes cachos de glicínias de hoje.
Mas são absolutos, novos, singulares,
os momentos com a sua luz e cor,
os seus insectos e as suas sombras.
Alguém que os colhera os fez pender
entre cabelos fecundos, de orelhas,
adornos para os filhos da Terra.
Estão, depois dos lírios e das camélias,
para salvar, em cada dia novo,
o viço dos cabelos, mais eternos
do que aja sepultada carne. Carne
de alguém que tinha um nome seu e que
se oferecia, com deleite, ao Tempo.
Só pode ter sido a de parentes, dúbios
coabitantes do ser que relata
esta actual Primavera, com saudade.
A Primavera, que me surpreende
somente por estar a ser olhada.

Se aquela rosa rubra, na manhã
em que surgiu, logo fosse ignorada,
eu não estaria aqui neste papel,
dando-me inteira à nova Primavera.
Recebo-a, olho-a como um visitante,
aliás porque, na sua latada,
ela está perto do meu sólio. Rosa
de repente vista, primeira rosa
na natural frescura. E, também,
o vento lhe tocou, e já a abrem
aquelas mãos que haviam sabido
lançar barcos de pétalas aqui.
Junto da rosa só cabe esta boca,
pronta a beijar com amor as suas línguas
ou a beber a linfa que é da abelha.
Havia uma boca assim, sem a face,
a respirar ao ritmo dessa rosa,
que hoje nasceu fadada para ser
a sempre minha, única, igual.
A cor da rosa mostra-me o lugar
daquela boca, e eu quero sentir-me
aqui e ali. Pois vejo-te, rosa,
e vejo a outra, a que foi beijada.
Assim, não posso mais do que olhar.
Rosas terás em redor, solitária.

– Eis os melros, rasteiros, que insistem
em tornar-se evidentes, saltitando
sobre cômoros de terra. Mas hoje
perante o mistério das flores súbitas,
são como eu, embora não como eu,
com a negra plumagem que os cobre.
Sobre a laje do poço correm dois,
negros contendores no mesmo sprint,
músicos de assobio que eu bem entendo.

E, próximos da rosa, mas alheios,
estão a nascer os narcisos, de amarelas
frisadas campânulas e de sépalas
perto do solo, que se elevam
na luz de cor. Também uma figura
de mulher genuflectida as colhia,
e uma criança, oscilando no riso,
quer ter para si uma flor solar.
Junto aos eternos matizes das pedras,
a cor dos narcisos, nítida, clara,
evoca esses desejos saciados
em tempo ido: o da mulher, prendendo-os
no seu seio, e os da criança, seguindo
o movimento que pertence ao tempo.
Hoje, como hei-de separar os corpos
da haste e da corola dos narcisos,
pois a mancha amarela tem a forma
humana contida em si, curva, erecta.
Salva-me o vermelho vivo da rosa,
que atrai a cor intensa dos narcisos
para contraste, outra tensão,
que eu revivo, amando o beijo da rosa
e a prece ao sol destes narcisos.
Mas outra prece, hesitante, desponta
ao raso dos terrenos, dispersa, ágil.
Flores que vibram esguias e tácteis,
de um vermelho ardente, submissas
como pálpebras, ao cair da noite.
Abrem-se na aurora, comovidas
pela unção da luz, porque se chamam
páscoas. E são amadas, benditas.
Anunciam a passagem eterna
da luz sagrada entre noite e aurora.
A aragem devagar as sacode,
finas folhas e hastes a dançar,
em pleno dia de êxtase, no sono
das corolas exaustas pela noite.

Noutra manhã, eu vejo, deslumbrada,
a poalha da brancura florida
que envolve os troncos velhos da ameixoeira,
flores que o ar conhece e o vento leva,
há muito, para lugares e tempos.
Poalha em que não estão vultos humanos.
Apenas um nó de sombra, atrás
de cada flor, mostra a imagem de antes
ou a espessura de um fruto futuro.
São as flores do jardim que guardam o enigma,
pois cada espécie vista tem em si
um sinal visível de outra estação.
Flores solitárias que, uma a uma, vêm
ligar-se a fragmentos de vida antiga.

– Repetem-se os melros plo empedrado,
a debicar sempre nas pedras húmidas,
sob o fascínio do cálido dia.
Tão nítidos, tão certos, a presença deles
não cabe ao lado de uma flora rara,
a desta Primavera em narração.

Também os loureiros em flor, visíveis
ao longe como nuvens, são visões
completas, com a floração e as folhas
na mesma cor de sempre, indecifrável.
Alguém pega no ramo do loureiro,
num verso clássico, e o dá a toda
a humanidade, pois a memória
da poesia passa de poeta a poeta,
para o mundo. Se o meu relato é vivo
é porque olho c'os outros a Primavera,
e nesta Primavera eu vi melhor,
presa do assombro do que é novo e antigo.
Os meus olhos, o espírito e as mãos
pegam em cada imagem de uma flor,
em cada dia de visão e ganho.
Mas a perda, enfim, virá somar tudo
igual a si mesmo, uno, passado.
E, de repente, uma flor de palavras
muito branca chega até mim, e é
esta estação, nesse florir de goivos.
Uma carta traz-me inscrita as palavras
de Eugénio, goivos, e o seu eflúvio.
Esta transcreve-a ele de Pessanha,
diante de tão nítidos canteiros.
Grata, prendo-me a esses elos vivos
da corrente de vozes, que se oferecem
aos ouvintes, depois de recolherem
o real, o findo, o que foi amado.

Aqui, depois do loureiro, floriu
a acácia, também sem qualquer vulto
escondido no seu florir imenso.
São árvores solitárias, constantes
na pura relação com a luz solar.
E, talvez por fim, neste infinito,
uma inflorescência de gladíolo
rosada, erecta, se tenha aberto.
Vem de um único bolbo, soterrado,
está só, entre a verdura vária.
Junto de si viveram outras hastes
também de gladíolos, há muito tempo.
Braços levaram-nas juntas, consigo,
em braçadas de amor e de alegrias.
Os braços são as linhas de matizes,
unidas em redor da cor suavíssima
das flores de hoje, a florir aqui.
Cada manhã me põe diante dos olhos
nova forma de cor e luz e, às vezes,
figuras esbatidas de outra estação
igual, porém perdida já, inane.

– Melro audaz, que te aproximas mais
de mim, ou do que eu fui e agora sou,
não vejas que eu represento o Tempo.
A tua colheita de grãos e de larvas
seja o teu mais subtil pensamento!

E, afinal, entraste no meu espaço,
num intervalo entre o concreto e o abstracto.
 
Fiama Hasse Pais Brandão
[cenas vivas]