não preciso mas tu sabes como eu sou
encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite.
as pessoas quando acordam são outras, já sabias,
essa névoa contemporânea do medo miudinho
que perdemos nas cidades e nos corpos, tu entraste
antes de mim nos jogos, o enxofre da música e o
lago do feitiço, inocente homem breve que sonha
tu bem sabes.
depois aluguei a bruxa por uma vasta noite.
e a minha vida mudou, a noite cresceu,
a vertigem ardeu-me nos braços até a sangria
do tédio quando para sempre julguei que te perdia.
na luta perdi um ou dois braços,
mais do que o que tinha. Mas esta memória é um palácio,
são corais no pensamento. Jardins e fantasmas,
o gume nas mãos sorvendo, criança estratosférica
e profunda: sem braços e agora sem mais nada.
não me percebeste, enchi-me de fúria.
é uma arte, queria eu dizer, matar sem retrocesso e
atraso – ah aqueles braços para apoiar as mãos ─ ,
ceifando. Saturno e o vento na proa erguendo.
o navio no mar parado, parado: completamente.
parado como dizer? Não dizer, eu sou uma vida
medonha e múltipla. E agora descanso
deitado nestas mãos que mexem
sem apoio, sabes, nascendo dos teus olhos
p’la manhã.
de: Rui Costa
em: A Núvem Prateada das Pessoas Graves