20 março 2012

DURANTE A PRIMAVERA INTEIRA...


Não sei como dizer-te que minha voz te procura 
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite 
esplêndida e vasta. 
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos 
se enchem de um brilho precioso 
e estremeces como um pensamento chegado. Quando, 
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado 
pelo pressentir de um tempo distante, 
e na terra crescida os homens entoam a vindima 
— eu não sei como dizer-te que cem ideias, 
dentro de mim, te procuram. 

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros 
ao lado do espaço 
e o coração é uma semente inventada 
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia, 
tu arrebatas os caminhos da minha solidão 
como se toda a casa ardesse pousada na noite. 
— E então não sei o que dizer 
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. 
Quando as crianças acordam nas luas espantadas 
que às vezes se despenham no meio do tempo 
— não sei como dizer-te que a pureza, 
dentro de mim, te procura. 

Durante a primavera inteira aprendo 
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto 
correr do espaço — 
e penso que vou dizer algo cheio de razão, 
mas quando a sombra cai da curva sôfrega 
dos meus lábios, sinto que me faltam 
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer 
coisa extraordinária. 
Porque não sei como dizer-te sem milagres 
que dentro de mim é o sol, o fruto, 
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, 
o amor, 
que te procuram.

Herberto Helder
[excerto do poema "Triptico"]





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