14 março 2014

MAQUINISMO


imagem encontrada na net


[encontrei este conto na revista nº 4, verão de 2013,  da Bertrand.
deixo-o assim, sem palavras minhas, para não estragar o seu sentido de
inquietude e da acutilante realidade dos tempos que correm]

  Pouco mais de trinta anos, a farda regulamentar e um espanto de olhos abertos. Rosto simpático, de marido e talvez pai, de homem que dorme à noite.
   Hão-de as mãos subir ao último instante, uma barreira de osso e pele que não deixe entrar o que os olhos não podem parar.
  Importam tão pouco os olhos.
  Há gritos desordenados por cima das rodas nos carris, são vozes ou o metal dos travões de emergência, um atrito de ferro pensado para atrasar o fim, bondoso e inútil como uma oração.
  Mecânica e morte, uma vontade estúpida de olhar para o relógio que ainda me segura o tempo. Em frente, onde um rosto que não entende, de chegar à noite a casa e Nem sabes o que me aconteceu. Despindo a farda, despindo a carruagem e os pedaços de carne trilhados nas rodas.
  Nem eu entendo, nem eu sei, nem eu vou chegar.
  Queria cantar para dentro mas não há músicas para isto, não me lembro de uma melodia nem a vida a passar. E sempre me juraram que sim, que os anos todos num único segundo, que as tristezas e muito mais as alegrias. Porque raio me juraram sempre?
  É a minha primeira vez e também deve ser a sua. Algum de nós há-de cobrir o rosto antes do fim.
  Tremem-me as pernas ou o chão. Quantos segundos desde que ainda não morri?
  Dois homens em breve desarrumados, um de corpo, o outro só da cabeça.
  Talvez tenha filhos que se chamem Paula e Sebastião. O que foi? Não foi nada, dirá o homem de rosto simpático, dedos pelos cabelos muito loiros, mãos por onde a morte não entrou.
  Uma mulher que espere e até ame, Sara, de silêncios e palavras leves. Foi apenas um dia triste, não penses nisso, há quem nasça só para morrer.
  Sou quase um dia esquecido.
  Ninguém me agarra, imagino-lhes as ideias em vai-e-vai, as pernas tensas e as bocas mudas, E se eu... também eles de mulheres e maridos, filhos e casas para pagar. E ninguém me há-de agarrar.
  A travagem aumenta a espera e pode a eternidade ser isto, um desacelerar continuo que não chega para eliminar completamente o movimento.
  Agora ele abre e fecha a boca, não sei se me insulta ou se chama por Deus. Salva? Salta? Mas eu não consigo, nenhuma força para saltar.
  Um rosto de um homem bom, duas rugas fundas que hão-de marcar-lhe a testa, um aviso sério contra o que eu sou.
  Não me lembro de nenhuma canção, nem dos anos, só de algumas palavras que um dia foram versos, «saber do tempo mais do que a espera». Levo pouco e deixo pouco.
  Há-de Sara beijá-lo e trazer-lhe o sono, Há quem nasça só para morrer e agora está morto, uma música de embalar homens com medo, uma voz por cima das rodas e dos gritos aflitos de gente.
  Gostava de conhecer-lhe o nome para lhe dizer adeus, é a minha primeira vez e também deve ser a sua.
  Chegámos ao fim do tempo, e sou eu quem levanta as mãos.

de: Nuno Camarneiro



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